sexta-feira, 16 de maio de 2014



A DENTADURA DESAPARECIDA

Cheguei cansada ontem à tarde.
Não era apenas cansaço físico. Estava um pouco abalada com alguns acontecimentos. Afinal estava voltando de uma missa de corpo presente. A mãezinha do padre da nossa comunidade faleceu e foi velada na igreja que fica aqui na rua onde moro.
Vinha de coração apertado. Eu acredito na vida eterna e rezei bastante durante a missa, mas mesmo assim ficamos comovidos.
Logo que entrei em casa o telefone tocou e era minha sobrinha neta e ela perguntou se eu estava bem.
Falei: Estou sim. Por que, Duda? O que aconteceu?
Ela respondeu que chegou à casa da vó Lili (bisavó dela) e esta estava falando enrolado e ela achou aquilo esquisito. Então notou que a vó Lili estava sem a dentadura.
Perguntei: Mas o que aconteceu afinal, Du?
Ela foi dizendo que tinham procurado em todo canto e nada de encontrarem.
Pedi que passasse o fone para minha mãe e ela foi me explicando: Não sei o que aconteceu. Não encontro a dentadura.
Minha mama está com oitenta e três anos. É lúcida e super independente.
Achei estranho e lhe falei:
Mãe, você lembra que quando perdíamos alguma coisa você nos dizia que deveríamos rezar a Salve Rainha até o mostrai e a mãe do céu nos mostrava...
Comecei a rezar dentro do coração a Salve Rainha e ela me falou:
Achei, filha. Estava no canteiro de flores. Acho que dei um espirro e enquanto tirava umas ervas daninhas e ela saiu de minha boca...
Acabamos rindo.
Minha mama se despediu dizendo:
Viu como a Nossa Senhora nos atende na hora?
E não foi?
Bem. Minha mãe mora em outra cidade e este fato aconteceu ontem à tarde.
Hoje ela me ligou pedindo desculpas. Falou que não queria que a Duda ligasse para me preocupar com estas coisas.
Falei que estava tudo bem. Que foi engraçado.

sonia delsin


NÃO VIVO APENAS ESTA VIDA

Não vivo apenas este tempo de agora.
Eu vivo outras vidas num ser onde tudo cabe.
Onde tudo ficou armazenado.
Não que eu viva de passado.
Mas tenho conhecimento.
Passei por muito sofrimento.
Pra chegar aqui andei por muitas estradas.
Chorei nas encruzilhadas.
Mas também dei tantas risadas.
Não foi um riso tolo, fútil.
Foi-me muito útil.
De tudo que passei uma coisa eu guardei.
Uma criança no coração.
Uma criança que conserva a ilusão.
Que conserva o sonho, a fantasia.
Uma criança que se encanta com o mundo.
Conservo este ser que ama a poesia.
Que nas pequenas coisas da vida encontra a alegria.
Guardo a lembrança de um amor sem igual.
Até já me equivoquei pensando tê-lo encontrado.
Pensando tê-lo ao meu lado.
Mas não era o meu eterno amado.
Se fosse jamais teria me magoado.
Ele nunca teria me machucado.
Sigo buscando esta criatura que fez parte de outro tempo meu.
Estará pelo espaço sideral?
Estará aguardando outra encarnação?
Quem me garante alguma coisa?
Posso até estar equivocada.
Mas ninguém nunca nos afirma com convicção nada.
Acredito que somos muito mais do que o pó da estrada.


sonia delsin


JOVEM SIM. POR QUE NÃO?

Ela me contou hoje esta estória e eu a repasso para vocês.
Foi uma senhora de oitenta e um anos que me contou tudo.
Falou-me que se sente jovem. Que redescobriu a vida.
No seu jeitinho simples e super simpático me contou que um dia comentou com os filhos que desejava ir para um asilo e estes falaram que ela não tinha necessidade alguma disso.
Morar na companhia deles, ela não queria.
Começou a frequentar uma faculdade de terceira idade, conheceu muitas pessoas e viu sua vida mudar a cada dia.
Contou-me que dança todos os domingos à tarde, e que os idosos se encontram para jantar e bater papo às quintas-feiras. Falou que sempre adorou dançar e que na juventude não perdia um só baile. Que depois do casamento se viu privada disso. Não só disso, mas de muitas coisas.
Encantada com viagens e passeios diz que tem uma disposição de jovem e nem é preciso que ela diga, pois está estampado em sua imagem risonha.
Emocionou-me esta senhora pelo jeito cativante, pela energia tão positiva.
Diz que cem anos é o mínimo que deseja viver e acredito que passará mesmo disso com seu alto astral.
É uma jovem senhora de oitenta e um anos de olhos brilhantes, fala mansa. Tão meiguinha que dá vontade de beijá-la.
Aconselhou-me a dançar, vibrar com a vida.
Quem a vê participando das atividades não consegue acreditar que tenha mesmo oitenta anos. É vivaz.
Percebi algo nela. É sagaz. Nada lhe escapa. Tem o raciocínio tão rápido que chega a espantar.
É maravilhoso encontrarmos em nosso caminho pessoas tão maravilhosas como ela. Sei que seremos muito amigas ainda, porque ela me conquistou com a primeira conversa.


 sonia delsin


MÃE QUERIDA

Mãe, muito já lhe falei de meu amor.
Não só falei, como demonstrei.
Tantas vezes silenciosamente conversamos.
E outras tantas dialogamos.
Tudo que me falou ficou gravado em meu ser.
E isto quanto me ajudou em meu viver.
Como falar de seus olhos azuis?
São lagos transparentes.
Outras horas transbordam como rios com enchentes.
Quando me olha com tanta ternura
faz com que eu me sinta a coisa mais pura.
Mãe, você é toda doçura.
Nunca que apagarei o dia que a cabeça entre seus joelhos eu enterrei e chorei.
Era uma menina, lembra?
Uma menina-moça.
Suas pernas com minhas lágrimas eu lavei.
Eram lágrimas quentes... de dor ardentes.
Naquele dia eu soube que o peso do mundo não estava apenas sobre as minhas costas.
Éramos nós duas a sentir a carga e ela seria aliviada então.
Porque você estaria sempre me ajudando naquela provação.
Nossos momentos, mãe querida, são tantos que não cabem num poema, numa crônica ou num conto...
Seriam necessários muitos.
Mas não quero falar de tristezas neste seu dia.
Quero falar de alegria.
Ando feliz, sabe?
Daí deve sentir as batidas de meu coração. E deve ouvir o ressoar de meus risos.
Nós duas temos grande sintonia.
Quantas vezes quando não podia viajar eu a visitava de uma forma diferente.
Era pura telepatia? Magia?
A saudade eu ia matar e matava mesmo.
Vinha nova pra meu mundo depois de visitar nosso recanto feliz.
Esta casa onde você vive é um ninho, é tudo de bom, é carinho.
Não posso estar ao seu lado, mas estou, minha querida.
Nos meus pensamentos... no coração.
Porque nele você vive, reina, como rainha absoluta que é. É meu anjo, é minha luz.
Esta simples cartinha de forma alguma meu imenso sentimento traduz.

sonia delsin


O BROCHE QUEBRADO

Dudinha e eu explorávamos a caixa de “jóias” da bisa (nada a convence a chamar a bisavó de bisa como gostaríamos)... Chama-a de vovó Lili.
Quem diria que um dia alguém chamaria a D. Lina de Lili? Mas Duda gosta e ficou.
Eu sei que mamãe adora isso.
Bem, nós duas fuçávamos lá e encontramos o broche quebrado.
─ Tia, que é isso?
─ Um broche, linda.
─ Pra quê?
─ Pra enfeitar um pouco a vovó.
─ A Lili usa isso? ─ ela perguntou fazendo uma careta. ─ Que feio. Vou jogar fora.
─ Não, mas tem dona. Precisa perguntar pra ela se pode.
─ Ela não vai querer mais isso não, titia. Tá quebrado.
─ Vai lá e pergunta se pode jogar então.
Aquele toquinho de gente saiu correndo com o broche na mão.
Engraçado. Ela adora as bijuterias de minha mãe. Desde pequenininha ela sempre colocou os colares. Nós ríamos muito ao vê-la com vários deles dependurados no pescoço. E os anéis que lhe caiam dos dedos. Ela tentando erguer os dedinhos pra segurar...
─ Duda, Duda! Vai devagar.
Ela nem parecia me ouvir tal a pressa.
Agora ela gosta mais de brincar com nosso celular, adora mexer em nossos batons e explora nossas bolsas em busca destas coisas.
Bem. Naquele dia ela simplesmente desistiu de perguntar pra vovó Lili se podia jogar o broche fora e veio novamente guardar na caixa onde estava.
Do mesmo jeito que saiu correndo pra perguntar, voltou e depositou aquele objeto quebrado  na caixa.
Sempre adorei crianças e Eduarda é nossa preciosidade.
“Duda, estou com saudade... com uma vontade de te ver, te abraçar...”


sonia delsin


UMA ESTÓRIA DE AMOR

O ano de mil novecentos e setenta e três ia terminando e eu resolvi assistir os jogos de voleibol no colégio esportivo da cidadezinha onde morava.
Eu saía de casa pela segunda vez depois do drama que me marcara.
Mancava feiamente ainda, mas quisera ver os jogos finais (levei um tempo pra me recuperar e felizmente fiquei completamente curada).
Nossa! Nunca esquecerei aquele dia, nunca, nunca...
Eu vi no meio de toda aquela gente na arquibancada uns olhos que me fascinaram. Pensei naquele instante que aqueles olhos já tinham feito parte de minha vida. Eram aveludados, escuros e tristes.
Os olhos que tanto me encantaram não se voltaram para minha direção e no dia seguinte eu fazia uma viagem.
Ausentar-me-ia da cidade por alguns meses.
Partia, como já estava programado, mas levava a lembrança daqueles olhos comigo.
Quando voltei não o reencontrei e o tempo ia passando. Já se aproximava do terceiro mês do ano seguinte e um belo dia nos reencontramos. Desta vez aqueles olhos escuros se voltaram para mim e um tremor percorreu meu corpo.
Alguns meses depois estávamos namorando e como fomos felizes juntos. Tanto, tanto. Por mais de vinte e cinco anos...
Até que um dia os olhos escuros que sempre me fitavam com tanto amor se distanciaram. Ficaram frios, irreconhecíveis mesmo.
Era o fim de uma linda estória de amor e eu não podia mudar uma vírgula dela. Simplesmente não podia.


sonia delsin


ME DÓI TE VER ASSIM, MENINO.

Ah, menino.
Um dia me apresentaram a ti.
Foi durante um musical.
Naquele dia pouco falamos.
No outro dia nos reencontramos e conversamos.
Outras vezes nos vimos.
Nadamos juntos.
Ficamos amigos.
E eu te disse coisas que diria a um filho.
A ti eu me apeguei.
És tão bonito.
Lindo mesmo.
Soube de teu passado.
Do caminho do sucesso e do caminho das drogas.
Soube que tentaram de ajudar.
Por que fugiu de lá?
Eu te vi um dia destes e senti uma dor no peito.
Não pudemos conversar.
Foi de relance que te avistei.
Meu querido, eu queria te falar, mas não sei onde posso te encontrar.
Na verdade estás num labirinto e eu queria te mostrar uma saída.
Por que será que conhecemos pessoas tão especiais e nada por ela podemos fazer nesta vida?
Menino, menino. Quando é que vais crescer? Rezo por ti, que mais eu posso fazer?

sonia delsin